quinta-feira, janeiro 13, 2022

 Estive adormecido, não morto.

Vaguei por novas sendas, provei novos sabores. 

Atravessei tempestades e vaguei no deserto por considerável lapso.

Lavei meus olhos por diversas vezes, procurei orientar-me mirando por pontos distintos.

Descobri que não há um  único rumo e enxerguei caminhos para os quais nunca havia olhado.

Procurei percursos mais mansos e os encontrei.

Descobri, todavia, que até a harmonia é dinâmica, e não se sustenta na estagnação.

Formei família, tive um filho. Meu. Real. Vibrante.

Encontrei, em meu filho, um amor que não sabia existir.

Encontrei a mim mesmo, embora ainda me perca de vista de tempos em tempos.

Não posso dizer que renasci, porque não morri, mas, em relação a mim mesmo, sou um espírito novo e aqui deitarei uma voz que sequer conheço.

Se é que isso é possível, estou curioso de mim mesmo.

Alea jacta est.


sexta-feira, março 13, 2009

O SEMPRE NOVO COMEÇO

Adiei um pouco a minha volta.
Minha casa, vazia, ainda representava algo a ser superado. Não mais uma barreira, mas fragmentos do que um dia o foi.
Aos poucos fui voltando. E cada vez que vinha limpar, arrumar ou guardar, senti que lidava com os resíduos daquilo que durante tanto tempo me fizera sofrer sempre demasiadamente: eu mesmo.
Entre tirar o pó e organizar armários, inaugurava algo totalmente novo em mim, uma nova percepção do que sou e do que é a vida. Talvez tenha iniciado uma nova etapa, ou, quem sabe, apenas começado a abrir os olhos.
É como se houvesse, enfim, compreendido, que a vida tem sentido único e que os fatos passados somente existiram ali, naquele determinado ponto em que lhes foi reservado acontecer e desatar toda a sua cadeia de consequências. E não se pode ignorar as consequências dos fatos, sob pena de fechar os olhos para o que é real.
No quarto dia, enfim, trouxe a bagagem e, após um ano inteiro fora, tranquei por dentro a porta da frente do velho duzentos e dois.
Não era um retorno, pelo que senti, era um novo começo.
Nos momentos em que se faz as pazes com o tempo, é possível perceber com mais clareza as suas virtudes. Hoje entendo todo regresso como um ponto de partida.
Também a mudança me ensinou coisas novas. A primeira delas é que toda mudança física implica um convite a uma mudança psicológica; a segunda é que reduzir a bagagem é uma atitude necessária e venho aprendendo a combater a tendência inconsciente de acumular coisas e pensamentos desnecessários.
Tenho objetos demais, memórias demais, receios demais, mágoas demais, orgulho em excesso... mas agora tenho a consciência disso e, enxergando melhor, posso definir com mais clareza o que há de ser retirado.
O primeiro descarte já ocorreu. Joguei fora aquela pressa de perfeição. Tratarei este processo sem exagero ou urgência, dando a cada etapa, seu necessário tempo.
Levarei, literalmente, toda a minha vida e reelaborarei este projeto quantas vezes for preciso.
Aprender a lidar consigo mesmo demanda tempo e paciência.
Uma vez em minha casa, sozinho, não me instalei de imediato no meu antigo quarto. Também a ele, voltei aos poucos, atribuindo, a cada espaço, uma nova função, como se jamais houvesse estado aqui.
Ocupar a casa me trouxe uma sensação surpreendentemente boa. É como se, só agora, houvesse assumido as rédeas da minha vida, da minha verdadeira vida.
Um dia depois da última etapa da grande faxina na casa, levantei sentindo-me leve, corajoso e humilde. Olhei no espelho e vi um homem. Brotou em meu rosto, um sorriso mais calmo, reflexo de uma felicidade mais branda.
Foi preciso tanta coisa para chegar até aqui, tantos castelos de areia tiveram que ruir, tantas lágrimas foram necessárias para diluir minhas certezas.
Há entulho do concreto das minhas verdades espalhado em cada pequeno espaço da minha compreensão.
Levará a vida toda, eu sei, para compreender o que realmente sou, mas por ora tem me nutrido essa reconfortante sensação de esperança.
Por enquanto, sou senhor da minha casa, responsável por mim mesmo, condutor da minha vida.
Assim, mais leve, a caminhada fica mais fácil. Sempre adiante.

terça-feira, novembro 11, 2008

amor-palhaço

Vou vender poesias tristes nos sinais de trânsito, mendigando moedas em troca de versos amargos sobre um coração machucado e sem sorte.
Minhas poesias serão grandes, de estrofes inacabáveis, carregadas de palavras ingênuas e romantismo barato...e em todas elas constará o mesmo tema, da forma mais ridícula, repetitiva e irritante que conseguir: o amor.
Vou me fazer de palhaço e pintar o rosto com um sorriso e uma lágrima. Talvez nem precise pintar a lágrima.
Há um desacerto em mim... e quero me vingar do ridículo que o amor me faz passar. Quero que olhem e pensem: o amor é um palhaço idiota, miserável e ridículo que passa a vida mendigando, vendendo palavras frustradas e promessas irrealizáveis... a troco de esmola.

segunda-feira, setembro 08, 2008

Balanço

Inventei um sonho para cada um dos tantos dias que vivi até hoje e minha vida tem caminhado, passo a passo, de um sonho a outro.
Andei por vários destes anos buscando o significado de mim e, em mim mesmo, assim sozinho, não vi resposta nem graça. Inventei amar, mas o amor se mostrou uma criatura indomável e inconstante, ora precipitada, ora arredia e meu coração sacolejou muito ao tentar cavalgá-la.
Inventei guerras e me fiz herói, mas meu heroismo não resistiu à rotina e as guerras perderam o sentido no somatório da vida.
Na trilha oposta, busquei a paz, mas também a paz se mostrou inócua.
Amei o vento, as noites de lua, as montanhas, as cachoeiras, as longas distâncias à pé, as horas incontáveis pedalando e as caçadas aos pôres-do-sol.
Aliás, foi entre os elementos aprendi o significado da simplicidade e me senti mais forte.
Fiz do movimento minha maior verdade e é o movimento que me dá essência, porque sou inquieto.
Não gostei de mim quando causei mágoas, quando decepcionei olhares, quando fui egoísta, quando vaidoso ou medíocre.
Gostei de mim quando estive entre as pessoas, quando entreguei sorrisos nas bocas, quando arrastei crianças pela imaginação afora.
Sim, sobretudo, gostei de ser palhaço.
E sigo andando, tentando cansar a vida com minha persistência, sorrindo das suas chacotas e rastreando o selvagem amor.

sábado, novembro 24, 2007

Meu engano

Quando o telefone toca por volta das oito e meia, pelas raras vezes em que estive em casa neste horário eu já sabia: era engano. Uma voz distante perguntaria se eu era um fulano que não era, e, aos gritos, no telefone público barulhento, levaria alguns minutos para entender que ligou na cidade errada. Eu o despacharia com uma certa impaciencia condescendente e abreviaria, ao máximo, a conversa.
Mas meus pais me visitavam, e foi pai quem atendeu o telefonema das oito e meia.
Seu esforço em compreender a situação chegou a me impacientar no início, mas antes que eu pudesse alertá-lo, ele já havia iniciado um diálogo que mudaria minha forma de ver as coisas. Meu pai atendeu àquele telefonema como as pessoas simples e antigas recebiam os viajantes, acolhendo-os, matando-lhes a sede e oferecendo o que de melhor podiam oferecer no pouso. Para ele, que viveu os tempos em que um telefonema era algo raro e significativo, era muito importante que chegasse ao destino certo.
Pai tratou o desconhecido como trata seus próprios amigos, com a mesma atenção, com o mesmo companheirismo. Aquele telefonema enganado poderia ser de um pai para um filho. Poderia representar a notícia de um evento importante, como o nascimento de uma criança, a morte de alguém ou a venda de uma fazenda. Poderia representar um dinheiro que havia sido enviado ou recebido, uma urgência sanada, uma seca duradoura, uma bênção.
Enquanto auxiliava o homem a decifrar os DDD's, sem dar-se conta disso, meu pai me ensinava uma das maiores lições de humildade que já recebi. Aquela simplicidade expunha minha indiferença e o egocentrismo que a cidade grande escreveu em mim. Eu perdi a espontaneidade. Aquela paciência que me faltava talvez fosse o elo que encaixasse alguma dose de vida nessa rotina individualista, crua e solitária.
Mais que isso, era meu pai. Aquele homem simples e tão espontaneamente bom...meu pai.
Ali por perto, sem que o mundo dele se alterasse, o meu passava por uma reviravolta, mas as lágrimas abafadas que caíam eram de orgulho e amor, gratidão do aluno pela bela lição recebida.
Aos setenta anos, meu pai me surpreende como quando eu era criança e ele o herói. Só que a criança cresceu e o herói ficou mais real.
Indo para a fazenda, meu velho herói abrindo a porteira.

quinta-feira, outubro 04, 2007

Mutatio


Transformações são assim, por mais que se tente precisar o momento em que uma coisa se torna outra, há um intervalo que fica oculto. É neste momento que algo some e algo surge.

Foi assim comigo, eu mudei e algo que era meu se perdeu no limiar da dor.

A alma, como tudo, se adapta.

O que sou hoje é o resultado de uma cadeia de fatos dos quais me lembro muito bem.

Da transformação nada lembro.

Lembro-me dos fatos de forma insípida e incolor, crua.

Não sinto nada. Não consigo sentir, não consigo falar sobre sentimentos.

Acharei, um dia, a lógica de tudo e saberei, então, porque sangra essa alma imatura.
Até lá, continuarei andando de lugar em lugar, colecionando pôres-do-sol.


sábado, junho 23, 2007

espelho da alma

Esta noite, sem perceber, espalhei armadilhas por todos os cantos e fui caindo em uma por uma.
Uma lembrança cortada, uma palavra ao avesso do sentido, uma música interrompida no primeiro acorde.
O forte que há em mim foi perdendo o traquejo enquanto as máscaras despencavam indiferentes ao que ia por dentro.
Descobri que meu coração é menino e não entende a confusão dos personagens instalados na rotina.
Logo não há mais saída. Logo comigo. Logo agora.
A saudade irradia pela corrente sanguínea, paralisa as pernas e enche olhos d'água.
Choro um pranto nobre e profundo na solidão do meu quarto.
Meu coração, menino que é, anda com medo de mim.



quinta-feira, março 29, 2007

Pedra Bonita - Itanhandy



(Fazenda Itanhandy, Rubim, Minas Gerais, por Marcelo Lutterbach)
Mova-se! Algo dentro de mim sempre ordenou isso. Saí de casa pequeno e sempre que volto vejo que há muito a explorar na terra dos meus pais e dos meus ancestrais.
O jeito aventureiro que cultivo encontra sempre aconchego na minha própria casa. Em outros tempos, meu pai foi tropeiro, cortava poeira e fazia rota de comércio do sertão ao litoral.
Quando mais menino, ensaiei minhas primeiras andadas à moda dos tropeiros, montado em um cavalo. O posto era honroso, assistente de Vovô Augusto, meu primeiro grande amigo, meu primeiro professor de vida. Tempos depois, já mais aquilatado de corpo e arranhado de paixões, cortei estrada, de bicicleta, desse sertão até a beira-mar e vi de perto o quanto meu vale é rico, apesar da pobreza que se fez sinônimo da palavra Jequitinhonha. Agora olho essas pedras e penso em escalar uma por uma, só para ver o que elas sempre viram naquele horizonte do meu sertão. Hei de fazê-lo, mas hei de fazer isso apaixonadamente, amando a terra que piso, querendo aprender com as rochas a ser forte e longevo.
Às vezes penso que foram estas rochas que moldaram os homens da minha terra. Homens como meu pai e meu avô, fortes, firmes, impassíveis e, sempre, olhando o que virá no horizonte.

sexta-feira, julho 28, 2006



Não há uma só gota de palavra que respingue aqui, debaixo desse céu absurdo.

Tudo é lua, céu, estrelas e eu.

Acredito que nunca estive tão absurdamente tranquilo na solidão.

quinta-feira, maio 25, 2006

areia dos sonhos

Quando pequeno, lembro de sonhar com areia.
Era uma grande bola de areia - sim, nos sonhos de crianças elas são possíveis -, e ela rolava aumentando de tamanho e, à medida que aumentava, ela se tornava mais leve e, à medida que ficava leve, a superfície pela qual rolava se tornava mais rugosa e o seu rolar na superfície irregular era algo incômodo e insuportável, eu sentia isso.
Quando a bola de areia parecia atingir seu ápice de tamanho e a superfície já não tinha como ser mais irregular, ela se equilibrava sobre a ponta de uma agulha e essa imagem simbolizava o extremo de uma angústia sufocante.
Mas a bola se tornava pequena de novo, pequena como a ponta da agulha em que se equilibrava e sua densidade era tanta que seu peso era muitas vezes maior, mas a superfície se tornava lisa e o seu deslocamento era, então, suave, lento e tranquilo.
Eu devia ter três ou quatro anos, pelas minhas contas de adulto.
Não havia medos nem a escravidão da lógica, só a angústia ilustrada por minha própria imaginação.
Meus sonhos eram uma aliança intuitiva entre o que sentia e as coisas que via no mundo sem saber ao certo o que eram, como areia, peso ou agulha.
Hoje sinto meus sonhos contaminados pela lógica, enquadrados.
Mas na noite passada, eu vi areia em um sonho qualquer e, no próprio sonho, lembrei daquele sonho de criança. Nesse meta-sonho, eu vi que um dia fui capaz de elaborar algo despido de todos os conceitos que me foram socialmente servidos até hoje, eu era pura imaginação.
Percebendo isso, quis construir um sonho novo, então pulei no ar e saí voando.